terça-feira, 30 de junho de 2015

“Minha mulher faz Scrapbook” (Relato de um marido)


“Eu vou lhe contar tudo, desde o início…
Ela sempre gostou de artesanato. Adorava freqüentar feirinhas, comprava coisas pra alegrar a casa, até fazia um bordado de ponto cruz de vez em quando.
Um dia, uma amiga que tinha chegado dos Estados Unidos trouxe uma revista. Uma simples revista. Inofensiva. Pelo menos, era o que eu pensava… Já estávamos casados há alguns anos, dois filhos, tudo ia bem na nossa vida. Mas aquela revista…
Era uma revista com uns trabalhos de recortar e colar fotos, fazer álbuns de fotografia, algo assim! Minha mulher ficou encantada com uns álbuns e falou: – “Nossa! Que lindo isso!! Será que é difícil de fazer?” E a amiga disse: – “Acho que não. Olha só, aqui no final da revista tem uns PAPs e umas explicações. Eu te empresto a revista e você tenta”.
Ela deixou a revista num canto e ficou se enrolando uns tempos. Até que vieram as férias e ela reclamou que estava sem saber o que fazer nos dias em que passaríamos na praia. E eu sugeri: – “Por que você não tenta aqueles trabalhos da revista que a sua amiga te emprestou? Faz semanas que está aí. Se não for pra fazer é melhor devolver”. Quando penso que EU sugeri! Não consigo me conformar…
Ela saiu, comprou uns papéis, cola, adesivos, régua, base de corte e, no final de uma tarde, tinha uma página pronta. Me mostrou, orgulhosa do resultado e eu a incentivei.
EU A INCENTIVEI!!! Mesmo não entendendo nada daquilo, dava pra ver que não tinha ficado lá essas coisas! Onde já se viu um velocípede e uma peteca voando no meio de umas fotos, sem nada ter a ver com o tema das mesmas, já que eram as fotos do nosso último natal e nem as crianças tinham ganhado isso de presente! Mas ela estava empolgada e já tinha descoberto um curso numa loja longe de casa!
O curso durava 4 semanas, só que ela convenceu a professora de que não poderia, por causa do trabalho, fazer em 4 semanas. Precisava fazer em 1, já que seria só pra ter uma base! Afinal, aquilo era só um hobby, não era? Foi aos poucos. Eu nem percebi. Hoje eu olho pra trás e tento identificar o momento em que tudo começou, mas não consigo… No começo foi legal, ela estava empolgada, alegre. Logo terminou um álbum, “ALL ABOUT ME” ela disse.
Comecei a ouvir as conversas dela pelo telefone com as amigas e vi que era uma linguagem incompreensível pra mim: – “Oi! Terminei meu STAR BOOK! Sério. Não, fiz um lift da Elsie misturado com a Lisa! Juro! Usei um emblishment de vellum, outros eu fiz heat emboss, com as bordas “inkadas”. É verdade! Tô tão orgulhosa… Usei até meu crocodilo! Agora estou aqui pensando se faço um flag book ou um lift de um ABC. O que vc acha?”.
ABC? Dry Emboss? Heat emboss? Crocodilo? Crocodilo pra mim sempre foi um bicho, mas, aparentemente, eu estava enganado. Nossa comunicação estava começando a ficar difícil.
Agora, grampeador, lá em casa se chama Fastenator. Copiar é liftar . Mas o pior nem era isso… O problema era a invasão silenciosa da nossa casa. Aos poucos começamos a encontrar papeis, livros, e todo tipo de material de scrap em todos os cantos. Sentar no sofá era um perigo! Ser picado por um agulhão era o mínimo que podia acontecer. Isso, claro, quando a gente conseguia um espaço pra sentar. Geralmente tudo estava tomado por papeis, tintas, carimbos, linha e agulha!
A empregada não podia jogar nada fora sem antes mostrar a ela! Tudo servia: a lata de Nescau, de leite ninho, milhões de potes invadiam as estantes e armários! Uma estante foi tomada pelos livros e revistas de scrapbooking que chegavam dentro de sacolas a cada vez que ela saía e passava numa livraria (“estava em promoção, olha só!”), mas também pelo correio, com as coisas que ela pedia pela internet (“você sabia que livros NÃO PAGAM imposto de importação? Não é o máximo?”).
Papeis então… Estavam por tudo. Acho que algum cientista ainda vai descobrir que papeis têm vida própria e que, ainda por cima, se reproduzem! Afinal, como explicar às vezes em que eu fui pegar um papel para escrever algo ou embrulhar um presente e a pilha que antes tinha 30 cm de altura agora tem 40! Sem contar que quando ela viu, deu um grito e disse: – “O QUÊ?! Você não está pensando em escrever ou embrulhar um simples presentinho num Acid Free Kraft White Paisley Making Memories by Jennifer McGuire, né?” Não sei quem é essa Jenni-não-sei-o-que, mas deve ser alguém muito importante.. . Muito mais do que eu e nossos filhos que já não tinham roupas novas porque sempre tinha um novo lançamento de uma nova linha de uma nova loja.
E sempre a mesma desculpa: – “A gente tem que estar sempre renovando nosso estoque de papeis e ferramentas porque senão o projeto não vai ficar fashion! Vai ficar horrível!” Horrível, na verdade, tinham ficado nossos almoços e jantas… Primeiro ela começou a fazer só coisas super rápidas (afinal, tinha ficado scrapeando até as barrigas roncarem mais alto do que a martelada para colocar um ilhós), depois começaram os PFs, já que não tinha nenhum espaço na mesa que não fosse tomado por papel, tecidos, régua, tesouras, cola, etc., etc., etc. E ai de quem tentasse apoiar o prato ou copo num pequeno espaço da mesa! Afinal de contas, scrap, água e comida não podem estar juntos!
Num domingo, estávamos todos em casa quando, de repente, tocou um despertador. Eu levei um susto! Perguntei porque o despertador estava tocando no meio da tarde e não acreditei na resposta que ela deu sem nem levantar os olhos do LO que estava fazendo: – “Ah! É o horário de ir buscar as crianças na escola. Eu coloquei pra despertar pra eu não esquecer… Você sabe, quando eu pego num LO não vejo a hora passar!E esqueci que hoje era domingo e não desliguei!”
E tem mais! Nos armários, começaram a aparecer caixas e mais caixas. Aliás, as caixas estavam também na sala, ao lado do sofá, no nosso quarto, ao lado da cama, na área de serviço… Essas caixas eram um mistério pra mim, até que um dia interceptei uma conversa, e vi que a coisa era ainda pior do que eu imaginava! – “Tô arrasada. Tenhos uns 30 kits aqui em casa e, pelo menos, uns 10 UFO’s(=Unfinished Objects). Não, ainda não consegui dar um fim naquele LO, acredita? Só faltam os fuxicos e eu não me animo! O problema é que tem pelo menos uns outros 10 que eu quero começar, mas estou me segurando. Então, menina, tem aquela revista japonesa que tem uns transparencies LO’s que são demais! Mas eu já disse que só pego depois de terminar, pelo menos aquele com os ghost que estão há séculos no quarto!!!” E continuou a conversa… – “Então… é só pegar enfiar, abrir as perninhas e dar uma batidinha. Está pronto!” – “É… tenho que fazer como você! Dar um fim nas primas! Dentro das sacolas tinham UFOs?!”.
Minha mulher estava recebendo marcianos em casa e ainda fazendo fuxicos com eles? Logo ela, que nunca foi de falar mal da vida de ninguém! Será que ela estava a ponto de ser abduzida?! E que história era aquela de fantasma no quarto? Com certeza tinha a ver com esse tal de LO! E essa história de abrir as pernas… dar fim nas primas???!!! Será que está participando de alguma quadrilha? E se a polícia baixasse aqui em casa? A NASA, a CIA, o FBI? Já estava até vendo a cena… Helicóteros sobrevoando a casa, as crianças apavoradas num canto e aqueles homens em macacões e capacetes de astronauta entrando na casa, vasculhando tudo e dizendo: “Soubemos que a dona dessa casa mantém LO’s em casa, além de ter UFOs reféns, presos em caixas. E ela, com ar de desdém “Humpf, esse macacão deles podia pelo menos ter um scrapzinho! Uns apliques! Deveriam customizar esses macacões”.
Achei que aquilo tudo já estava indo longe demais! Falei com ela, tentei ser compreensivo. Disse que estava sentindo falta dela, de passearmos juntos, só nós dois, propus uma viagem. Ela relutou por uns tempos, mas depois aceitou. Ficou bem feliz com a idéia. Feliz demais, até. Eu devia ter desconfiado…
Ela disse que organizaria tudo, que passaríamos 04 dias num lugar bem romântico. Na volta, ela dizia pra todo mundo: – “Não sei porque ele ficou tão bravo! A gente saiu pra passear todas as noites! Cada foto maravilhosa!!! E depois, ele sempre reclama que trabalha demais, que está sempre cansado…Quando eu arranjo dias inteiros pra ele ficar de papo pro ar, sem fazer nada, dormindo até tarde ele acha ruim! Agora, amiga, vou te contar: a feira, a 25 e o Scrapday foi TU-DO-DE-BOM!!!”.
Comecei a ficar desesperado.Procurei os maridos das amigas dela e vi que todos estavam na mesma situação. Criamos um grupo de auto-ajuda, e nos reuníamos, enquanto elas faziam crops, pra trocar experiências.
As histórias eram escabrosas! – “Levei minha mulher pra uma viagem à Itália pra ver se ela se desligava um pouco. Quando entramos na Basílica de São Marcos, em Veneza, ela deu um grito e caiu de quatro! Ficou o tempo todo olhando só para o chão. Disse que era uma fonte de inspiração infinita pros LO dela. Quis tirar foto, era proibido, então ela se ajoelhou e ficou desenhando, tirando os modelos. Todo mundo olhando pras obras de arte, pros mosaicos, e ela ali, copiando o chão e a parede! E foi a mesma coisa em todas as outras cidades, Milão, Florença… Eu já não sabia mais o que fazer. Além de ter que ficar minutos numa mesma posição até obter a foto ideal para determinado LO. Quase cair num chafariz porque o ângulo tinha que pegar a parede da cor que parecia com o papel X que ela tem! Agora ela só fala em participar de um cruzeiro nas Bahamas. Scrap Cruise! 24 HOUR NON STOP SHOPPING!”.
“Comigo foi pior! Tinha uma obra perto de casa. Uma nova linha de ônibus. Eles estavam instalando os postes de luz e os tais postes vinham embrulhados em um tipo de papel, sei lá. Só sei que ela foi até o meio da obra (uma rodovia!), e saiu carregando pacotes e mais pacotes daquele papel! Eu perguntei: “E se a polícia te pega roubando material na rua?” E ela disse: “Imagine! Eles iam JOGAR FORA! Quer heresia maior do que jogar esse papel super diferente fora?! Dá uma cobertura excelente pra usar nos chips!”. Eu fiquei em pânico pensando que a gente ia começar a comer papel em cima das batatas, pois “chips”pra mim era batata…”
“Isso não é nada! Minha mulher voltou a estudar inglês. Eu fiquei contente porque pensei que, enfim, ela estava se libertando dessa coisa. Nada disso! Ela voltou a estudar inglês pra poder assistir um canal americano de scrapbooking pela internet! 24 horas por dia! Isso sem falar que é para participar de uma tal de CKU ou CHA. O que é que eu vou fazer?” E começou a soluçar.
Os outros maridos, penalizados, ofereceram mais uma cerveja e suspiraram em uníssono! Todos sabiam muito bem o poder da Internet! E agora, depois do tal de Facebook, as coisas tinham piorado!
Um deles andou bisbilhotando o perfil da mulher e descobriu que ela agora fazia parte de uma comunidade (que ele já estava a ponto de chamar de ‘seita’) chamada (com muita razão, diga-se de passagem) de Scraphólicas Anônimas!!!
É o fim! “É por isso que eu vim aqui, Doutor. Vim para saber se isso tem cura, se tem alguma coisa que eu possa fazer pela minha mulher!”
O médico era um especialista. Uma das maiores referências nacionais em Psiquiatria. Esse médico era realmente a última esperança de toda a família. Depois de escutar toda a história em silêncio profundo, com os braços cruzados sobre o peito e o olhar grave, o médico apoiou os cotovelos sobre a mesa, respirou fundo e disse: – “Bem… Por acaso o senhor não poderia me dar o endereço desse grupo de maridos? Minha mulher também faz Scrapbooking…!”“
(autor desconhecido).